top of page
Foto do escritorRaul Otuzi

a_bsurda entrevista Rafaella Rímoli, artista e poeta

Atualizado: 5 de jul. de 2020

Aos corações de pedra, leiam e se enterneçam. Às almas inquietas, leiam e se abasteçam. Não conheço Rafaella Rímoli pessoalmente. Quem me falou dela foi meu amigo João Mendonça. Acho que conversávamos sobre pessoas criativas e incríveis. Não sei bem. O fato é que desde então venho acompanhando o seu trabalho.  É bonito de ver e sentir. Sua poesia transcende. Encanta o modo como Rafaella se relaciona com as palavras. É completamente envolvente a maneira como cuida da vida. Seus talentos são múltiplos. Fotografia, desenho, pintura, ilustração, poema, dança, música… toda forma de expressão artística ganha contornos únicos ao perpassar por seus olhos e mãos. Acho que estou exagerando? Então tire a prova, leia agora.

Vencedora dos prêmios: Literário Paulo Freire (2012), ‘Escritores in Progress’ (2012) e Literário Darcy Ribeiro (2014), Rafaella é autora do Livro ‘O Haver Flor’ (Editora Coruja, 2013). Em breve, seu livro de poemas  ‘Contínuo Instante’ (Editora Patuá) vem aí. Oba!!

OBRA: CONTÍNUO INSTANTE


1. Como você se define artisticamente? Quais são as suas principais referências?

Eu não me defino artisticamente. Como diz Alberto Caeiro:

“Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu.”


Há sim algumas referências que saltam mais aos sentidos. Van Gogh é importantíssimo para mim. Tanto as obras quanto além. Há uma relação de proximidade de dores, e de como as cores se casam com os estados emocionais.

Artes indianas são especiais, em pintura, Radhashyam Raut me inspira com seu estilo Patachitra, as cores vibrantes, o sagrado, a comunhão, a história. Essa arte teve início no leste da Índia, os artistas pintavam nos muros os deuses locais. Quando as pessoas visitavam, queriam levar lembranças do momento, então os artistas criaram cartões com contos e histórias. Acho isso imensamente lindo. As histórias e as cores unindo os sagrados de cada um, e perpetuando momentos… Atualmente é comum os artistas trabalharem juntos em suas casas ou praças e as crianças ajudam! Desenhos de crianças, garatujas, me fascinam absolutamente.

Na poesia muito me inspiram as ‘ignorãças, insignificâncias e despalavras’ do poeta do chão e, por isso do céu, Manoel de Barros.

Também gosto muito da síntese eternamente expandida dos haikais do Bashô, que traz a experiência do zen e, também, a poesia-companhia do Leminski.

Olha isso:

“silêncio

o som das cigarras

penetra as pedras”

(Bashô)


“A noite

me pinga uma estrela no olho

e passa”

(Leminski)


2. Ilustração, poesia, música ou literatura? Tem que escolher um, não vale ficar em cima do muro…rs

Eu fico em todos os lados do muro, em cima, em baixo, dentro… Até ser muro! Então, a poesia. Sempre a poesia… Dela nascem todas as minhas manifestações artísticas. Da poesia nasce cor, traço, letra, dança, som, voz, silêncio…


OBRA: RETRATO NO QUARTO 2.


3. Qual é a sua lembrança criativa mais antiga? Qual foi a sensação (o tomar consciência) de ter criado algo original e que tinha valor?


Essa pergunta é muito bonita e me emociona, tenho uma queda para origens e fontes.

A primeira vez que soube conscientemente o que era escrever poesia foi com alguns cinco ou seis anos, não sei bem. Estava na sala vendo um filme com minha mãe e chorei. Não entendi o motivo. Aquele choro simplesmente veio, uma vazão, e me levava para outro lugar completamente novo. Nesse lugar cabia tudo, tristeza e alegria juntas, coabitando. Fiquei um pouco encabulada e minha mãe disse “filha, você está emocionada”. Eu estava mesmo emocionada e também estava alguma outra coisa que eu jamais saberia explicar. Faltaram as palavras, e da falta nasce tudo. Então fui para o meu quarto, sentei na cama e os pés nem tocavam o chão, balançavam como se caminhassem em alguma outra coisa movida a vento. Olhei fixamente para o armário branco em minha frente (não me lembro, realmente, se era branco, talvez não fosse, mas tive um branco, literalmente) e escrevi mentalmente, ou recebi, o verso:

“quando você escolhe o que quer, o que quer acaba escolhendo você.”

4. De onde surgiu a ideia do Poéticas Coloridas? Como funciona?

O Poéticas Coloridas é uma gestação de vida inteira. Mesmo sem consciência da gestação, gestava. E há um momento em que as coisas nascem. Há o momento em que a semente rompe a terra. Nasceu em agosto de 2017 e segue se desenhando a cada instante.

‘Poéticas Coloridas – Vivências Artísticas de Autoencontro’ é uma metodologia prática que une arte e autoconhecimento para expandirmos o nosso saber sensível. É um espaço de ampliação da criatividade mediado por mim e pela amiga de vida toda e psicóloga Francine Belotti. Nossa missão é propiciar terreno fértil para a floração dos saberes sensíveis de cada indivíduo, potencializando voz e cor da poesia interior por meio, principalmente, da pintura e da poesia. Quando nos encontramos, podemos nos encontrar verdadeiramente com o outro e com o mundo.

Trabalhamos essa metodologia nos seguintes formatos:

– Oficinas-sementes, que são práticas pontuais e itinerantes e acontecem para semear o estado contemplativo;

– Cursos-livres, com duração estendida, geralmente de 6 a 8 encontros mais aprofundados e temáticos. Ano passado realizamos o curso olhARTE e agora estamos realizando um trabalho de Sensibilização de Professores no Colégio Marista de Ribeirão Preto, em que trabalhamos as questões sensíveis dos professores da educação infantil, ampliando os nossos vértices internos e externos fortalecendo o pertencimento ao grupo;

– Workshops, em que trabalhamos o acesso ao saber sensível em uma prática condensada, os participantes ganham autonomia no processo de sensibilização;

– e Poéticas Coloridinhas, que é a metodologia aplicada em crianças com foco em sensibilização pelo fazer artístico lúdico.


As vivências passam por etapas de exercícios de imersão, de produção artística e de roda de conversa. É um espaço para simplesmente ser.

Instagram: @poeticascoloridas

E-mail: poeticascoloridas@hotmail.com


OBRA: SABEDORIA. SAGRADO JORNADA MISTÉRIO. VASO DE FLOR EM CIMA DA MESA.


5. Qual é a sua concepção de arte? Por que é tão importante? Dá para imaginar um mundo sem manifestações artísticas?

A minha concepção de arte não é exatamente minha. É uma mistura de todas as pessoas, artistas e estímulos sensíveis que passam por mim. Algumas coisas ficam. A fala da poeta portuguesa Matilde Campilho sobre a função da arte me habita completamente. Ela diz que a arte “faz fraquejar os joelhos” e tem a função de “salvar os segundos”, “tirar a atenção da dor em alguns momentos, outras vezes levar a atenção para dor em uma função de chamar”.

Até é possível imaginar um mundo sem manifestações artísticas, mas só é possível imaginar como seria porque há arte, entende?  Nós somos muitos, não somos pela metade, a arte é um espelho das nossas imensas possibilidades.

Para mim, a arte nos mostra a nós mesmos. Revela-nos o que ainda não conhecíamos ou então intensifica o mistério.

A arte potencializa o nosso infinito.

QUANDO EU CHOVO. CLIQUE: ANA LUIZA YOSETAKE.


6. Como funciona o seu processo criativo? Flui naturalmente ou você lança mão de artifícios e artimanhas? Quais?

Eu me entendo como um recipiente. Vou sendo preenchida, preenchida, preenchida até que transbordo. Quando isso acontece faço arte. Depois é um período de escassez necessário, um período de refazimento. O tempo desses ciclos é bastante variável.

Às vezes flui naturalmente, às vezes lanço mão de artifícios já conquistados. Às vezes mesmo usando os artifícios já conquistados a obra não vem, e tudo bem. A obra não vir faz parte do seu tempo de chegada depois, do seu amadurecimento.

Tenho uma pasta no meu computador com o título “Poesia para salvamento em caso de descaso”. Lá estão os poemas mais amados, que tem o poder de me mover e modificar.

Também separo imagens e acontecimentos inspiradores e volto a olhar quando sinto necessidade. Há a questão do olhar. Não há como perseguir inspiração, se eu persigo ela desaparece. Se eu relaxo e observo, tudo, absolutamente tudo é matéria de poesia.

Há a dor também, essa que todo mundo tem.

Quando a ferida pulsa e me lança ao desespero do vazio, nesse exato momento estou me expandindo, e a arte faz caber tudo, acomodar tudo o que sinto.

Muitas vezes ouço música, outras o som do dia/noite/madrugada ou da respiração são a trilha sonora.

Curioso, umas das minhas pastas de inspiração é uma pasta de casas e lugares para se habitar.

E a palavra é uma espécie de lar para mim.

Muitas vezes não sei sobre o que vou escrever, mas saio escrevendo, e o texto vai se revelando aos poucos, com cuidado e me surpreende. Muitas vezes vem uma imagem na minha cabeça e permanece, aí sei que quero desenhar ou escrever sobre aquilo.




OBRA: MULHER COM PEIXE NA CABEÇA.

7. Que ideia você faz do futuro, com tanta tecnologia, inteligência artificial… Como o ser humano pode lidar com tanta incerteza e angústia?

Eu tenho muita dificuldade de idealizar ou pensar sobre o futuro nesse sentido, sabia? Mas sou bastante otimista na verdade. Estou me concentrando mais em aprender a viver o presente. As incertezas e angústias são essenciais, fazem parte da nossa completude.

Se eu aprendo a estar presente em todos os meus sentimentos, inclusive os mais difíceis e contraditórios, posso dialogar com eles, entender o que me dizem sobre mim, sobre a minha relação com o outro, sobre o todo, e, assim, consequentemente o futuro acontecerá, como um desenrolar de novelo, naturalmente.

8. Uma poesia, uma cor, um som, um sorriso, um momento, um projeto, um lamento.


Tenho um poema que diz sobre tudo isso:

“…viver é colocar

pequenas contas

coloridas

no fio de náilon

infinito…”


OBRAS: FLORES EM VERMELHO E BRANCO. DÁLIA.

9. Em um piscar de olhos, se você tivesse o poder de criar qualquer coisa, qualquer uma, o que criaria?

A consciência em mim e em todos nós de que nós, juntos, já temos esse poder.

9 ½. Desafio. Faça uma frase juntando “perda”, “cor” e uma terceira palavra à sua escolha, mas que comece com a sílaba: “li…”

Pode ser um poema?

Linhagem:

o medo da perda

também habita

a CORagem.

Muito obrigado!

A gratidão é mútua. Obrigada pela oportunidade do encontro por meio da palavra!

BÔNUS. BÔNUS. BÔNUS. TRÊS POEMAS DE RAFAELLA RÍMOLI 


Aprender

Quando criança, quero aprender todas as palavras. Quando adulto, quero esquecê-las. Sempre errava escrever saudade. Escrevia saldade porque o L é mais alto do que o U e minha língua salgada tocava o céu da boca. Sempre errava escrever sorrizo e não sei bem o porquê. Bendito o dia em que eu não souber mais nada…

Erupções

Trago em mim todas as letras escritas. Trago a distância daquilo que foi e do que um dia será. Nestes abismos cabem palavras como flautas doces ou plumas em penumbras. Meu coração não está em pedaços embora o escute pela metade. Meu coração é uma ponte intermitente entre tudo o que existe.

Eu tenho um poema em mim

Eu tenho um poema em mim. Bem no centro do peito. Rasgado, aberto. Eu tenho um poema certo sobre águas turvas e transparentes. Um poema que fala de amor e cala saudade. É que saudade é um nome mudo do que mora na casa dos olhos. E os olhos são dois planetas rebeldes ancorados no sempre.

*entrevista publicada originalmente em 11/05/2018 em www.absurda.co

15 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page